“O morto abre os olhos do vivo”

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Fossas clandestinas no México, 30 mil desaparecidos na Argentina, a era de Franco e o pacto de silêncio, processo de paz na Colômbia, doses regulares de morte na Síria…temas de direitos humanos que reclamam verdade e justiça. Todavia, o que se passa quando estas últimas enfrentam uma impunidade persistente? Um projeto suíço busca dar resposta à questão.

O juiz espanhol Baltasar Garzón (centro) ao lado de Estela de Carlotto (esq.) e Hebe de Bonafini (dir.) do grupo das Avós e Mães da Praça de Maio em Buenos Aires, em março de 2012. (REUTERS/Marcos Brindicci)

O juiz espanhol Baltasar Garzón (centro) ao lado de Estela de Carlotto (esq.) e Hebe de Bonafini (dir.) do grupo das Avós e Mães da Praça de Maio em Buenos Aires, em março de 2012.

(REUTERS/Marcos Brindicci)

Um estudo intitulado "'Right to Truth, Truth (s) through Rights: Mass Crimes Impunity and Transitional Justice' (Direito à verdade, verdade(s) através dos direitos: impunidades de crimes em massa e a justiça transicional" questiona a maneira como o direito à verdade é aplicável em contextos nos quais a justiça penal é inacessível", resume a autora, Sévane Garibian, professora das universidades de Genebra e Neuchâtel.

Ou seja: "Qual significado tem o direito à verdade quando não há processos penais devido à existência de leis de anistia, do negacionismo do Estado, da política de desaparecimento sistemática dos corpos ou até da morte dos responsáveis? Como proteger – "fazer falar" – e trabalhar na busca de pistas, dos traços de extrema violência fora do campo da justiça criminal?"

A partir da hipótese de que o direito, além das suas funções reguladoras, tem uma "função cognitiva", que, em contexto (pós-) transicional, baseia-se em três tipos de provas: depoimentos, arquivos e restos mortais (cadáveres) o estudo aborda estas questões.

Para seu projeto, Sévane Garibian estabeleceu diversas associações com entidades suíças, incluindo o ministério das Relações Exteriores, Swisspeace, organizações internacionais, em particular com programas das universidades de Oxford e Columbia, assim como o Centro Internacional para a Justiça Transicional. O projeto conta também com o apoio de especialistas internacionais, dentre os quais Adama Dieng, Louis Joinet e Juan Ernesto Méndez.

Situação na Suíça

Com um enfoque inovador, interdisciplinar e internacional, o projeto busca resgatar um atraso helvético: "A Suíça é muito forte em tudo relacionado ao direito internacional, aos direitos humanos, ao direito internacional humanitário, à mediação e ao tratamento do passado (‘Dealing with the past’). Porém falta desenvolver o ensino e a investigação científica em matéria de justiça transicional nas universidades suíças", diz Garibian.

Na verdade, esse foi um dos motivos pelos quais o Fundo Nacional Suíço para Investigação Científica (FNS) atribuiu à jurista fundos para desenvolver seu projeto na Universidade de Genebra.

Em entrevista à swissinfo.ch, a pesquisadora explica que a ideia do estudo teve um forte impulso através de trabalhos realizados na Argentina, país que considera "um laboratório extraordinário na questão da justiça transicional e postransicional, e na Espanha".

Argentina “laboratório extraordinário”

O país sul-americano recorreu no espaço de trinta anos a todas as ferramentas jurídicas possíveis após viver crimes em massa (30 mil desaparecidos) perpetrados pela ditadura militar: uma comissão de inquérito para investigar os crimes, ação penal, leis de anistia, indulto e perdão, processos de reparação e, finalmente, a revogação de anistias e a reabertura de processos penais.

Mexicanos prostetam contra o desaparecimento dos 43 estudantes de Ayotzinapa, sequestrados pela polícia em 2014.  (Reuters)

Mexicanos prostetam contra o desaparecimento dos 43 estudantes de Ayotzinapa, sequestrados pela polícia em 2014.

(Reuters)

Os anos 1990 foram um momento crucial quando as organizações de vítimas e dos direitos humanos empreenderam uma férrea batalha pela justiça sob o slogan "Não esquecido e não perdoado". A professora Garibian explica: "Eles não podiam tolerar que a impunidade continuasse a imperar através das leis de anistia e a política de indulto do presidente Carlos Menem."

O caso argentino mostra o que pode surgir em um contexto que impede levar os autores dos crimes aos tribunais: a criação de novos instrumentos jurídicos. "O direito à verdade apareceu realmente nesse momento e permitiu a abertura de outras formas de processos, não penais, mas que permitiram trazer à luz os fatos."

Os anos 1990, um marco

O direito à verdade, ressalta a especialista, implica na obrigação do Estado de investigar, abrir arquivos, criar datas comemorativas, confiscar os locais de repressão e lutar contra o negacionismo. Tudo isso, além de participar e financiar a busca dos corpos desaparecidos, fazer as exumações e financiar as provas de DNA.

E apenas na década de 1990, o desenvolvimento da justiça penal internacional foi acompanhado pelo "boom" de testes de DNA, o que estimulou a luta das organizações que buscavam as vítimas da ditadura, especialmente as Mães e Avós da Praça de Maio. A prática emergente de exumação se somou à possibilidade de identificar os restos mortais.

Protestos das Mães da Praça de Maio em Buenos Aires, em 1985. (AFP)

Protestos das Mães da Praça de Maio em Buenos Aires, em 1985.

(AFP)

"Tudo isso se tornou possível de realizar, inclusive quando a justiça penal propriamente dita não é tangível. São coisas que se podem fazer em nome do direito à verdade, como reivindicam as vítimas ou seus familiares em um contexto de impunidade, mas que ainda são feitas paralelamente à reabertura dos processos penais."

Situação diferente na Espanha

Também no contexto das pesquisas para o pós-doutorado, e com o objetivo de efetuar uma reflexão comparativa, a professora Sévane Garibian, trabalhou na Espanha. Lá constatou uma situação exatamente oposta: para a acadêmica, foi "onde pacto do silêncio nunca foi quebrado."

As famílias que lutam contra a negação dos crimes cometidos na era de Franco (130 mil desaparecidos) dependem dos restos mortais: elas efetuam exumações, mas não com o apoio do Estado, mas sim de uma forma mais ou menos clandestina.

O Papa Francisco durante visita à Ilha de Lampedusa, Itália, em 8 de julho de 2013.  (AFP)

O Papa Francisco durante visita à Ilha de Lampedusa, Itália, em 8 de julho de 2013.

(AFP)

"O Estado não financia nada, o dificulta a busca. Idealmente seria necessário digitalizar toda as informações, criar arquivos, mas isso é muito complicado em um país no qual o governo não ajuda e não há fundos públicos para esse trabalho."

Os direitos dos mortos

No entanto, o tema dos restos mortais é essencial e envolve todos os países dos continentes. Seja pelas guerras civis assim como pela violência extrema. Tanto na Armênia, Ruanda, Guatemala como hoje, na Colômbia, México, Síria ou o Mediterrâneo, a última parada de milhares de imigrantes.

"Se trabalha muitos sobre os direitos dos vivos, dos sobreviventes, das famílias das vítimas e isso é fundamental, mas é preciso se ocupar também dos desaparecidos, dos que não estão presentes", critica a entrevistada.

"Ao trabalharmos com os direitos dos mortos, trabalhamos com os direitos dos vivos. Os mortos também têm honra e dignidade e devem ser protegidos". E esse é um dos aspectos que contempla em seu trabalho.
Para ela, quem recorda o provérbio "o morto abre os olhos do vivos', "trabalhar sobre esses temas não é somente trabalhar sobre o passado, mas também trabalhar sobre o presente e o futuro."


Adaptação: Alexander Thoele

Fonte: Swiss Info

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