Fazendo as pazes com o alemão

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A linguista Cristina Schumacher explica os porquês dos problemas com a língua

Além de todas as dificuldades enfrentadas por um brasileiro imigrante na Europa, a língua alemã vem culminar como um dos principais problemas apontados por quem vive em países germânicos. De aparência tão incompreensiva, o aprendizado se faz árduo e vagaroso, a ponto de muitos se dizerem traumatizados com a língua.

Na Suíça, a situação se complica devido à importância atribuída aos dialetos pela população local, fazendo com que os estrangeiros se sintam deslocados e aparte da sociedade onde vivem. Afinal de contas, eles aprendem um idioma nas escolas e se deparam com uma realidade linguística totalmente diferente nas ruas, tornando o que já era complexo em algo quase inacessível.

Para falar sobre o assunto, a linguista Cristina Schumacher, autora de mais de 30 títulos sobre o aprendizado de línguas e do livro Alemão Urgente para Brasileiros, destrincha a problemática com o idioma germânico e incentiva brasileiros e portugueses a darem mais uma chance à língua de Goethe.
swissinfo.ch: Na dissertação em que eu escrevi sobre mulheres brasileiras na Suíça, percebi que existe uma relação quase traumática entre o público brasileiro e o alemão. O que a Senhora atribuiria a essa isso?

C.S: Como eu explico no meu livro Alemão Urgente para Brasileiros, devido a sua fama de idioma difícil e inacessível, o alemão acaba sendo alvo de aprendizagem apenas das pessoas, cuja motivação para conhecê-lo se prova muito concreta. As dificuldades geradas por essa fama, mal fundamentada, ainda são acrescidas da suposta “antipatia” que o seu sistema fonético costuma evocar em ouvidos de falantes de outras línguas. É lamentável, contudo, que impressões dessa natureza venham a constituir barreiras ao contato ou conhecimento de um instrumento de comunicação de tão raras exatidão e beleza.

Eu acredito, no entanto, que esse fenômeno que acomete os falantes do português possa ser explicado com base em três dimensões. A primeira seria a dimensão formal da língua, que é baseada na dissimilaridade dos sistemas, que passam pelos traços dos sistemas de sons, de organização das palavras e até mesmo conceituais. Por exemplo, ao lidar com as duas línguas é possível perceber que um conceito em alemão pode precisar de um parágrafo para ser explicado, enquanto a mesma ideia em português precise ser explicada de uma outra. Muitas vezes esse conceito nem pode ser explicado, gerando uma expressão vazia. Português e alemão não são lentes simultâneas, mas bem diferentes.

A dimensão cultural, entretanto, também influencia o aprendizado. Isso significa toda forma de lidar com o convívio entre essas duas culturas, que são muito diferentes, por meio da língua. O idioma nos serve e se adapta à forma como vivemos.

Eu explicaria esse fenômeno também pela dimensão ritual e literal da língua. A Portuguesa, pelo seu caráter mais ritual, vai permitir que a pessoa diga “Passa lá em casa”, como uma forma de ritual de conversa, como maneira de estender um diálogo, ou até mesmo de mostrar uma simpatia, mas não um literalmente convite. O germânico, no entanto, entenderia como uma solicitação de presença. Fazendo uma ligação com o sócio cultural e o sistema de convívio, fica óbvio que essa relação vai exigir um certo preparo para ser compreendida.

Na língua ritual, como é a nossa, os códigos são sobrepostos. É necessária, dessa maneira, uma decifração dos códigos sociais para entender. Saindo dessa ótica e indo para a língua alemã, representante da conduta literal direta, fica então fácil perceber como o desconhecimento sobre a cultura própria e a alheia gera julgamento de valor e, consequentemente, pode trazer um componente de rejeição que vai atrapalhar seu aprendizado.

Muitos brasileiros percebem o alemão como grosseiro, mas na verdade, isso é somente uma outra forma de se expressar, de olhar o mundo. A língua não determina, mas conduz a um determinado ponto de vista. Ela tem um papel de manter um jeito de se relacionar com a realidade. Essa subjetividade, no entanto, é uma zona obscura, difícil de se alcançar. Por isso gera sofrimento. Portanto, esses fatores, todos juntos, se retroalimentam.
swissinfo.ch: Existem outras dificuldades?

C.S: Os dois idiomas apresentam contrastes de pronúncia e de estrutura. O rigor estrutural do alemão se contrapõe à flexibilidade do português. A pronúncia alemã, que tem suas consoantes explodidas pela tensão, é contrária às consoantes relaxadas do português. O jeito leve de dizer bonita é muito diferente do jeito marcado e duro do idioma germânico, que é tenso.

swissinfo.ch: Tenho a impressão de que suíços e alemães não têm muito problema para aprender o português…

C. S.: Quem teve acesso a uma língua de tão rígida estrutura como o alemão, que permite análises mais profundas, vai conseguir falar uma língua mais flexível como o português mais facilmente. Dessa forma, é comum encontrar alemães e suíços que aprendam a língua portuguesa mais rapidamente, situação que nem sempre se repete ao contrário.

swissinfo.ch: E o dialeto, onde entraria nessa questão?

C. S.: O termo dialeto surgiu com as grandes navegações europeias na América. Por si próprio, já traz inconscientemente uma relação de poder. A crença era a de que o Português, língua de dominação, seria superior às línguas faladas pelos povos locais.

Dialeto remete à sub língua, o que pode causar mais um bloqueio ao brasileiro que esteja tentando aprender. Isso não acontece somente com o alemão suíço, mas com outros “dialetos”. Dessa maneira, eu não gosto de usar a palavra dialeto, prefiro o termo variedades da língua. É importante remover o peso da situação.

swissinfo.ch: E qual a conclusão disso tudo? Vale a pena aprender alemão?

C.S.: Mas é claro. Aprender um outro idioma significa lançar mão de um recurso exploratório de outras culturas. Funciona como exercício de perspectivas, ver o mundo de outras formas. Isso te permite construções diversas, explorar as coisas com completitude.

Assim como explicou no meu livro, o alemão constitui, na verdade, um surpreendente meio de enriquecimento linguístico. O idioma germânico é precipitadamente julgado por muitos como uma complicação desnecessária. Aprender uma nova língua é como ocupar uma nova casa, com outra disposição de ambientes, orientação solar, colocação de aberturas, mobília etc. Nos tempos de hoje, quando os povos precisam conviver mais que nunca, é preciso ampliar as realidades de cada um. Portanto, não desistam e aproveitem essa oportunidade maravilhosa que têm em descobrir e participar de um outro mundo.

Fonte: Swiss Info

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