A Charada do Comércio Livre Transpacífico

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Enquanto negociadores e ministros dos Estados Unidos e de 11 outros países da Orla do Pacífico se reúnem em Atlanta, num esforço para finalizar os detalhes da novíssima Parceria Transpacífico (PTP), justifica-se uma análise sóbria. O maior acordo regional de comércio e investimento da história não é o que parece.

Ouviremos muito sobre a importância da PTP para o “comércio livre”. A realidade é que este é um acordo para gerir as relações comerciais e de investimento dos sues membros – e para fazê-lo em nome dos lóbis empresariais mais poderosos de cada país. Não nos iludamos: é evidente, a partir das principais questões pendentes, sobre as quais os negociadores ainda estão a regatear, que a PTP não é sobre comércio “livre”.

JosephE.Stiglitz,Prêmio Nobel de Economia, é professor na Universidade deColumbia; foi presidente do Conselho de Assessores Econômicos do presidente Bill Clinton e vice-presidente sênior e economista-chefedo Banco Mundial.

Adam S. Hersh, Economista Sênior do Instituto Roosevelt e Professor Visitante na Iniciativa da Universidade de Columbia para o Diálogo Político.

A Nova Zelândia ameaçou afastar-se do acordo, devido ao modo como o Canadá e os EUA gerem o comércio de lacticínios. A Austrália não está contente com o modo como os EUA e o México gerem o comércio do açúcar. E os EUA não estão contentes com o modo como o Japão gere o comércio do arroz. Estas indústrias são apoiadas por significativos grupos de pressão nos seus países respectivos. E representam apenas a ponta do iceberg relativamente ao modo como a PTP defenderia uma agenda que tenta na verdade contrariar o comércio livre.

Para começar, consideremos o que faria o acordo para expandir os direitos de propriedade intelectual para grandes companhias farmacêuticas, como se soube a partir de versões conhecidas do texto em negociação. A investigação económica comprova claramente que o argumento de que tais direitos de propriedade intelectual promovem a pesquisa é no mínimo fraco. De facto, há provas do contrário: quando o Supremo Tribunal invalidou a patente da Myriad sobre o gene BRCA, originou uma explosão de inovação que resultou em melhores testes a custos mais reduzidos. Na verdade, as provisões da PTP restringiriam a competição aberta e elevariam os preços para os consumidores nos EUA e à volta do mundo – um anátema para o comércio livre.

A PTP geriria o comércio de produtos farmacêuticos através de uma variedade de alterações enigmáticas de regras em questões como “vínculo de patentes”, “exclusividade de dados”, e “bio-lógica”. A conclusão é que as companhias farmacêuticas seriam na realidade autorizadas a expandir os seus monopólios de medicamentos patenteados, por vezes quase indefinidamente, a manter os genéricos mais baratos fora do mercado, e a impedir que competidores “bio-semelhantes” introduzissem novos medicamentos durante anos. É assim que a PTP gerirá o comércio para a indústria farmacêutica, se os EUA conseguirem o que querem.

Do mesmo modo, consideremos como os EUA esperam usar a PTP para gerir o comércio para a indústria tabaqueira. Durante décadas, as companhias tabaqueiras usaram mecanismos de adjudicação de investidores estrangeiros criados por acordos como a PTP, para combater regulamentos que pretendiam diminuir o flagelo de saúde pública do tabagismo. Ao abrigo destes sistemas para resolução de litígios entre estados e investidores (RLEI), os investidores estrangeiros ganham novos direitos a processar os governos nacionais em arbitragens privadas vinculativas, por regulamentos que considerem vir a diminuir a rendibilidade esperada dos seus investimentos.

Os interesses corporativos internacionais promovem os RLEI como sendo necessários à protecção dos direitos patrimoniais, na falta do estado de direito e de tribunais credíveis. Mas essa argumentação é absurda. Os EUA estão a procurar implementar o mesmo mecanismo num mega-acordo semelhante com a União Europeia, a Parceria Transatlântica para o Comércio e o Investimento, embora existam poucas dúvidas sobre a qualidade dos sistemas legais e judiciais da Europa.

É bem certo que os investidores (independentemente do lugar a que chamem lar) merecem protecção relativamente à expropriação ou a regulamentos discriminatórios. Mas os RLEI vão muito mais longe: a obrigação de compensar os investidores por perdas de lucros esperados pode ser e tem sido aplicada, mesmo quando as regras são não-discriminatórias e quando os danos públicos originam lucros.

A corporação anteriormente conhecida por Philip Morris está actualmente a intentar casos desse tipo contra a Austrália e o Uruguai (que não é parceiro da PTP), por estes países requererem que os cigarros tenham rotulagem de advertência. O Canadá, sob ameaça de um processo semelhante, recuou há alguns anos na introdução de um rótulo de advertência de eficácia comparável.

Dado o véu de segredo que rodeia as negociações da PTP, não está claro se o tabaco será excluído de alguns aspectos dos RLEI. De qualquer modo, permanece a questão mais lata: estas provisões dificultam a condução, pelos governos, das suas funções básicas – proteger a saúde e segurança dos seus cidadãos, garantir a estabilidade económica, e salvaguardar o ambiente.

Imaginemos o que teria acontecido se estas provisões estivessem em vigor quando foram descobertos os efeitos letais do amianto. Em vez de fechar fábricas e de forçá-las a compensar aqueles que sofreram danos, ao abrigo dos RLEI os governos deveriam ter pago aos fabricantes para não matar os seus cidadãos. Os contribuintes teriam sido duplamente atingidos – primeiro, no pagamento dos danos de saúde causados pelo amianto, e depois na compensação dos fabricantes pelos seus lucros perdidos quando o governo avançou para regulamentar um produto perigoso.

Ninguém deveria surpreender-se com o facto de que os acordos internacionais da América produzem um comércio gerido, em vez de livre. É o que acontece quando o processo legislativo está fechado às partes interessadas não-empresariais – para não falar dos representantes no Congresso eleitos pelo povo.

(Artigo publicado originalmente no site Project Syndicate)

Ponto de vista

A nova série da swissinfo.ch acolhe doravante contribuições exteriores escolhidas. Tratam-se de textos de especialistas, observadores privilegiados, a fim de apresentar pontos de vista originais sobre a Suíça ou sobre uma problemática que interessa à Suíça. A intenção é enriquecer o debate de ideias.

As opiniões expressas nesses artigos são da exclusiva responsabilidade dos autores e não refletem necessáriamente a opinião de swissinfo.ch.


Traduzido do inglês por António Chagas,
swissinfo.ch

Fonte: Swiss Info

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