Trumpismo inaugura nova era na política americana

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Trumpismo inaugura nova era na política americana

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RFI

mediaCapa da revista New York, uma peça de arte assinada por Barbara Kruger.

A cena, aparentemente banal, se deu no fim da tarde de sábado (5), em um dos comícios derradeiros de Donald Trump, em Tampa, no decisivo estado da Flórida. Depois de criticar o linguajar usado pelo rapper Jay-Z em um recente evento da rival Hillary Clinton, o candidato do Partido Republicano à sucessão de Barack Obama apontou para o público e destacou um cartaz com os dizeres “Negros apoiam Trump”.

Eduardo Graça, correspondente em Nova York

Todas as pesquisas mostram que nunca um postulante à Casa Branca teve apoio tão minguado dos eleitores afro-americanos. Pois após os urros dos militantes e a repetição pelo bilionário nova-yorkino da tese de que as pesquisas, assim como a imprensa e o Judiciário, foram “compradas” pela adversária, pôde se observar o que vinha escrito no outro lado do cartaz. Juntamente à frase “Hillary vai começar a Terceira Guerra Mundial” aparecia o endereço digital de um site centrado em temas como “se eleita, Hillary irá matar todas as mulheres negras dos EUA”. A ilustração é o resumo perfeito de uma campanha eleitoral como nenhuma outra na história recente dos Estados Unidos.

Ainda que não vença o pleito desta terça-feira – mesmo com a redução da diferença detectada pelas pesquisas nos últimos dias, as chances de uma vitória da oposição, de acordo com matemáticos e especialistas, não chega aos 40%. Trump já alcançou um feito impressionante: mudou para sempre a política americana e pelo menos um lado da moeda do imutável bipartidarismo que a marca desde o século XIX: o Partido Republicano de Abraham Lincoln, Theodore Roosevelt, Dwight Eisenhower, Ricahrd Nixon, Ronald Reagan e dos Bush.

Em letras miúdas, a capa da edição especial das eleições da revista “New York”, que traz o rosto de Trump sobreposto à palavra “perdedor” em peça de arte de Barbara Kruger, informa, na mosca: “Por que Trump já sai da eleição vitorioso”. A provocação pode parecer infantil, afinal o objetivo imediato de qualquer candidato a cargo eletivo – mesmo um que responda a um repórter, ao ser questionado já ter planos para o caso de derrota, desta maneira: “sim, irei para um lugar bem distante, uma ilha paradisíaca, em um resort muito mais caro do que você jamais poderia pagar” – é receber mais votos e alcançar o poder, a fim de implementar políticas públicas específicas.

Trump catalisa o que há de pior, mas desperta o sistema de seu torpor

Mas nunca houve um republicano como Trump e jamais a democracia americana, em seus 240 anos de existência turbulenta, experimentou um ciclo eleitoral marcado por tamanha explosão de sentimentos de xenofobia, mesclados a denúncias contra o candidato e seus apoiadores, de ataques verbais e físicos a mulheres, negros, latinos, deficientes físicos, gays, estrangeiros e outros grupos minoritários. Se alguém saiu perdendo no processo, aponta a outra revista que é referência na cidade, a “New Yorker”, foi a própria ideia, defendida com orgulho igualmente por democratas e republicanos, da “excepcionalidade da democracia americana”.

O trumpismo é resultado da sensação de desilusão de parcela significativa da classe média baixa americana, certa de que seus males são diretamente ligados à globalização e ao livre mercado. Se os números da economia estarão na terça-feira sensivelmente melhores dos que os dos dias das eleições de 2004, 2008 e 2012, com desemprego a 4,9% e 161 mil novos postos de emprego criados em outubro, a desigualdade social segue em marcha acelerada e alimentou o discurso populista nos dois extremos da política ianque.

Se o senador Bernie Sanders, socialista de Vermont, conseguiu amealhar o apoio das massas urbanas nas grandes metrópoles do país em sua tentativa de jogar o Partido Democrata à esquerda, Trump conquistou os votos rurais e dos bolsões de áreas da velha indústria que seguem em depressão desde a migração de postos de emprego para a Ásia e a parceria econômica com o México.

Enquanto Hillary teve de absorver em seu plano de governo temas caros ao socialismo vermontano de Sanders, como universidade subsidiada pelo Estado, maior carga tributária aos mais ricos e um controle mais rígido de Wall Street, Trump usou a exposição na mídia para alavancar seus negócios e estabelecer uma ligação direta com os eleitores à direita de uma maneira que o Partido Republicano não via desde George W. Bush.

Ao contrário do ex-governador do Texas, no entanto, Trump jamais exerceu cargo político e venceu de forma tão surpreendente quanto avassaladora as primárias republicanas, unindo os ultraconservadores de direita galvanizados pelos movimentos anti-Obama, como o Tea Party, novamente assanhado pelas altas recentes nos preços dos planos de saúde, resultado mais controverso da reforma do sistema de saúde conduzida pelo presidente democrata, a grupos ultranacionalistas, brancos supremacistas, libertários contrários a qualquer tipo de ingerência do Estado em suas vidas, combatentes de programas sociais voltados para minorias sociais e étnicas e cultores do velho sentimento federalista anti-Washington e anti-establishment, cujo representante mais óbvio nas eleições é Hillary Clinton. Todos decididos a, como cunhou Trump no slogan mais marcante dessas eleições, em tradução literal, “Fazer a América grande uma vez mais”.

Liberalismo social representado pelos Clinton e Obama em xeque

Pode parecer contrassenso jogar a lupa da análise política sobre o protagonista dessas eleições que muito provavelmente não irá governar o país a partir de janeiro. Mas se Hillary Clinton, à frente em todas as pesquisas, deverá seguir, a grosso modo, a linha de governo de seu antecessor, ao qual serviu como secretária de Estado, muito provavelmente movendo-se à esquerda em questões internas e à direita no tabuleiro internacional, Trump sai do 8 de novembro com um impressionante, e inegável, poder de fogo.

O resultado das eleições gerais – em que Senado, Câmara dos Representantes e governos e assembleias estaduais país afora também estão em jogo – podem cristalizar o trumpismo como força dominante no Partido Republicano e principal voz real de oposição com apelo popular ao liberalismo social representado pelos Clinton e Obama (a terceira explosão inegável do singularíssimo pleito de 2016 foi a da primeira-dama, Michelle Obama, senhora dos discursos mais contundentes dos longos meses de campanha). Não é pouca coisa.

Poucos levaram a sério, afinal, o que parecia ser uma figura quixotesca, hoje a pouquíssimos votos de se eleger presidente da maior economia e potência militar do planeta. Distante ideologicamente do que aqui nos Estados Unidos se convencionou chamar de republicanos do country club, elitistas defensores do status quo econômico e do livre comércio, internacionalistas por necessidade e aspiração intelectual, Donald Trump, embora frequentador assíduo, ele próprio, de redutos da elite desde os anos 80, conseguiu personificar como ninguém a extrema-direita decidida a tomar de assalto o partido de Lincoln.

Em seu texto citado na “New Yorker” desta semana, o historiador Jelani Cobb afirma que os votos dados a Trump na terça-feira assinalam a descrença de quase metade da população no singularismo da experiência americana. Para milhares de cidadãos americanos, acrescenta o diretor do Instituto de Estudos Afro-Americanos da Universidade de Connecticut, a unção de um presidente negro, em 2008, foi, na verdade, um retrocesso, “razão de humilhação nacional”. E que a resiliência do trumpismo é uma ameaça não apenas ao Grand Old Party (G.O.P.), alcunha dada, em era menos cínica, ao Partido Republicano, ou mesmo à democracia americana, mas ao planeta inteiro. Vá-se às urnas com um barulho desses.

Fonte: Rádio França Internacional

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