A pior noite de um jovem

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Arte: Carlos Eduardo de Andrade
Arte: Carlos Eduardo de Andrade

Muitos dos casais de funcionários públicos que deixavam o NetLive em Brasília naquele domingo inevitavelmente falavam sobre Meat Is Murder. Em um show que primou pela carreira solo de Morrissey, quem foi para ver The Smiths seria agraciado com apenas essa e mais duas músicas no set. E vídeos de matadouros kosher no telão. Provavelmente essa não tenha sido a primeira surpresa para os desavisados que também aguardavam os suspeitos espetinhos de carne para saciar a fome e deram de cara com assados de ricota. Afinal, as camisetas vendidas próximas à entrada do evento alertavam: Be kind to animals or I’ll kill you.

Como o fumante que vira para baixo o lado do maço com aquele pezinho preto, muitos desviavam o olhar do palco ou ficavam de costas com a cabeça colada ao peito do companheiro na hora que se revelavam imagens de uma verdade inconveniente para quem nunca pisou numa fazenda. Mesmo assim dava pra perceber que cantarolavam baixinho “no, no, no, it’s murder”.

Imagino que no momento em que entravam nos seus carros irregularmente estacionados ainda tinham dobrado em seus bolsos os flyers distribuídos sobre a causa vegan. Não preciso fantasiar onde uma porção deles foi parar naquela noite, pois os encontrei perfeitamente identificáveis numa imensa fila no Johnnie Burger 24h.

O semblante tenso deixava claro que o atendente gordinho não estava preparado para aquela horda de esfomeados que chegara sem qualquer sinal de aviso. O suor escorria da sua fronte quando tentava tranquilizar que todos os clientes seriam atendidos em suas mesas. Falava em voz alta como uma promessa. Dois minutos depois teve que admitir que havia falhado com a sua palavra.

Solitário e ofegante, olhava frustrado por cima dos ombros que pediam hambúrgueres de três andares e enxergava ao fundo pessoas bufando na espera dos mesmos sanduíches desnecessariamente fartos.  A repetição da campainha do elevador que trazia a comida do subsolo só servia para lhe aumentar a palpitação no peito. Batatas fritas esfriavam enquanto ele pedia para um homem sem paciência esclarecer se a sua Coca-Cola era com ou sem o gelo e limão que no fim das contas ele não conseguiria servir a contento mesmo.

Vários minutos depois, um sujeito se sensibilizou com a situação e em uma inversão maluca da ordem mundial se ofereceu para ajudar a entregar algumas das bebidas. Foi nessa hora que o atendente sentiu que tinha mesmo perdido o controle do seu ofício. Precisava fazer valer a foto de funcionário do mês de março de 2014. Se vivêssemos na Internet ou num universo com acesso a mais magias, teríamos uma pausa naquele instante e o Shia LaBeouf surgiria e berraria em seu ouvido: Just Do It!

Num rompante, ele decidiu que era hora mesmo de fazer alguma coisa e rapidamente tomou a direção da escada que levava à cozinha. Todos puderam ouvir um grande barulho e um gemido ao final.

Passado algum tempo de mistério, outros dois jovens subiram para entregar os pedidos já feitos. Relataram que o rapaz tinha mesmo caído, machucado feio o pé e que o gerente estava a caminho para leva-lo ao hospital.

Enquanto pagava a conta, um grupo ostentando belas camisas e sapatos chegou ao local. A demora não foi nem de três minutos, quando um deles sarcasticamente perguntou se O atendimento era sempre daquele jeito. Quis eu mesmo responder Escuta aqui, seu playboyzinho de merda. Você não faz ideia do que foi essa última hora. Você não faz ideia de que hoje um jovem teve a pior noite da sua vida. Então, espere e fique de boa.

Logicamente eu não falei nada se não pra minha namorada. Sei que pude ainda desejar que o Morrissey aparecesse pelado com uma motosserra e cumprisse a ameaça da camiseta àqueles comedores de animais sem sensibilidade. No entanto, me toquei que nesse caso eu também teria que me esconder desesperadamente embaixo da mesa. Tive que lidar com as minhas covardias e fui embora.

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