A coisa mais estranha

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Arte: Carlos Eduardo de Andrade

“É hora da aventura!”, disse mentalmente, o que, no entanto, já era suficiente para expressar o constrangimento da coisa toda e fazer a sua cara retorcer envergonhada diante do espelho. Notou o protetor solar acumulado no lado direito do pescoço. Espalhou de maneira mais uniforme, corrigindo um equívoco entre tantos para quem pretendia ficar tanto tempo a céu aberto. “Caçar”, enfatizava a si mesmo ironicamente. Não imaginava um caçador passando todo desajeitado o seu filtro fator 50. Tal homem iria conferir se a carabina estava carregada, botar o chapéu estilo safári e ganhar a savana. De todo modo, ele tirou o celular da tomada com a carga em 100%, pegou a carteira e as chaves do carro. Caminhou em direção ao elevador com o receio de encontrar alguma dessas vizinhas que querem revisar programas dominicais. Imagina explicar que aquele sujeito de bermuda de tactel e coturno não levantou para um churrasco de Itaipava e linguiça na casa dos amigos? Pois é, ele acordou para caçar Pokémon.

Ciente de que o mundo tende a ser menor do que aparenta, escolheu evitar os parques tradicionais da cidade. Obviamente, escolheu evitar competir com uma horda de crianças e seus pais aflitos na captura de um Bulbassauro qualquer. Mais certo ainda, escolheu evitar que aquele seu colega de trabalho entusiasta do CrossFit (“e aí, só nos computer?”) lhe encontrasse correndo no meio de um monte de pirralhos atrás de bichinhos que estão ali, mas na verdade, mais ou menos ali, eles aparecem na tela do celular, pois é uma coisa de realidade aumentada, sabe? Imagina um mapa tipo do Waze, e que tem bichinhos que aparecem nele, entende? Daí você vai até lá, liga a câmera do celular pra procurar… Enfim, nessa caçada, ele escolheu não se tornar uma presa óbvia do dia seguinte na firma.

Seguiu atento pela rodovia sem nem mesmo esquecer de ligar os faróis. Uma jornada de 32 km até uma reserva ambiental próxima, lar dos últimos Saguis Netemucenos. Imaginava que também seria lar dos Pokémon raríssimos, é claro.

Os dois veículos estacionados na entrada deveriam ser dos funcionários que lhe atenderam sem muitas suspeitas. Mesmo que fosse o primeiro a chegar, outras pessoas iriam aparecer durante o dia. Não em quantidade imensa, mas o suficiente para assinar uma folha inteira do livro de cadastro com nome, profissão, cidade de origem e um telefone de contato para casos de emergências. Ao ler “emergências”, deu um leve sorriso. Foi devidamente alertado pela recepcionista para não sair das trilhas, sinalizadas por uma margem de pedras. “Aventuras tendem a ser perigosas mesmo”, pensou fazendo pouco caso.

Decidiu entre uma das várias trilhas que permitiam ver a peculiar vegetação local, um dos últimos habitats preservados da Tiriva Jaqueira, e esperou os primeiros quinhentos metros passarem antes de acionar o aplicativo. Percebeu que aquilo tudo tinha pouco de caçada na selva, porém mantinha um quê de sci-fi de exploração. Um astronauta investigando um planeta desconhecido, mapeando espécimes variadas através do seu aparelho emitindo um bipe intermitente.  Mas se o episódio seria esse, deveria ter vindo com outra camiseta, ponderou.

Mesmo que fosse um lugar ermo, o sinal da internet se mantinha estável, e o primeiro alerta de algo nas redondezas veio depois do segundo quilômetro. Era um Gyarados. Classificação: muito raro (É como se ele tivesse encontrado uma Araciema Azul, se ela fosse um tipo de dragão d’água). Não conseguia conceber essa sorte de primeira. Nem questionar.

Era evidente que a regra de ter seu campo limitado por pedras ovaladas nunca seria respeitada. A localização se estendia além de uma mata mais fechada. Considerando que o jogo faz associações com o tipo de terreno, estipulou que deveria ter um rio ou lago adiante. Se embrenhou apressadamente, entre um tropicão e outro.

O caminho se provou extremamente complicado. A vegetação parecia se aglomerar em torno dele, a cada novo desvio empreendido. Cada metro era conquistado com muito custo, com a frustração de ter que retroceder muitas vezes. O monstrinho continuava aparecendo no mapa na tela. Não se via mais a trilha de onde ele estava, porém o telefone em 70% e totalmente funcional lhe reforçava certa segurança.

Pelo menos antes do barulho e da queda.

Na confusão que seguiu, não conseguia saber se tinha desmaiado. Lembra que ouviu um som indefinido, forçou um rumo entre o mato e despencou de um barranco. Não seria possível ter desmaiado. Na verdade, esse era o tipo de coisa que ela achava pouco natural. Como capangas treinados por milícias do leste europeu desmaiavam com um soco? Como ele, mesmo não sendo fisicamente referência pra qualquer coisa, iria desmaiar só por ter caído meio torto de um barranquinho.

Fato é que ele conseguiu chegar ao outro lado. Definitivamente, um outro lado. E os problemas começavam por explicar a escuridão em que se encontrava. Desmaiou o dia todo? Sentia que só tinha piscado e limpado a cara com terra em instantes. Mesmo que esse fosse o caso, faltava explicar os pinheiros. Muitos pinheiros. Coníferas cinematográficas por todas as partes. Nem sinal do Pokémon. E nem sinal do seu celular.

Então o barulho começou de novo.

Era a repetição de uma correnteza elétrica. Novos elementos eram introduzidos vindo de todos os cantos. Um sibilar prolonga se espalhava balançando as folhas. Um ‘pan’ mais alto colocou seu coração para fora. No escuro, notas graves pareciam acompanhar a batida acelerada do seu peito. Ou melhor, como se ali fosse a própria fonte daquele som mecânico. Ele se corrigiu. Daquele som eletrônico. Era isso mesmo, aquela floresta negra produzia sons como um grande sintetizador.

Então ele viu as luzes.

Azul. Amarelo. Vermelho.

Completamente desnorteado, se sentiu sufocado. Estava tenso a ponto de cessar a respiração propositalmente, imaginando assim pausar o sistema e reorganizar a sua leitura sensorial diante daquela sinestesia absurda.

Entendeu que não era simplesmente caótico. Exagerado sim, mas existia um padrão musical claro, a repetição de uma base. Algo soturno. Mas também colorido. Certamente medonho. Mantinha a tensão crescente como se alguma coisa estivesse por vir. Semelhante a uma preparação. Uma apresentação. Uma abertura. O clarão total que se fez lhe confirmou essa expectativa. Principalmente as silhuetas humanoides que vinha em sua direção.

Recuou e caiu mais uma vez. Pateticamente, se arrastou sentado no chão. Não foi longe.

E a coisa mais estranha aconteceu.

Um braço peludo e, digamos, gordinho se estendeu a partir do grupo. Pode reconhecer em sua camiseta o perfil de Matthew Broderick. Com a mão aberta solicitamente, o seu dono foi enfático:

– Venha comigo se quiser entender todas as referências da série Stranger Things.

Nesse momento a floresta começava a tocar Toto -Africa.

 

 

 

 

 

 

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